terça-feira, 12 de março de 2013

Uma Igreja sem Pontífice?


Nada indica nos Evangelhos que Jesus pensou em instituir uma dinastia apostólica

Frei Betto


Meu mestre em História da Igreja, Eduardo Hoornaert, de quem fui aluno no curso de Teologia, faz uma proposta ousada, mas não descabida: uma Igreja Católica sem Papa!

À primeira vista, soa como uma heresia. Tão assustadora como se propor, no século XIX, um Brasil sem imperador, uma Rússia sem czar, uma Áustria sem rei.

O papado não é uma instituição de origem cristã. A palavra “Papa” não figura no Novo Testamento. Derivar o papado do versículo de Mateus 16, 18 — “Tu és Pedro e sobre esta pedra construirei minha igreja”— é isolar o texto do contexto. Nada indica nos Evangelhos que Jesus pensou em instituir uma dinastia apostólica.

Foi o bispo Eusébio de Cesareia, mentor da política “globalizada” do imperador Constantino, que, no século IV, teve a iniciativa de redigir listas de sucessivos bispos para as principais cidades do Império Romano, de modo a adaptar a estrutura da Igreja ao modelo imperial de sucessão de poderes. Eusébio criou a imagem de Pedro-Papa.

A palavra “Papa” (Pope), do grego popular do século III, deriva de “pater” (pai) e expressa a estima dos cristãos por determinados bispos e sacerdotes. Chamar o sacerdote de “padre” (pai) e o chefe religioso de “Pope” (Papa) tornou-se costume nas Igrejas católica e ortodoxa. Ainda hoje, na Rússia, o pastor da comunidade é chamado de Pope.

Cipriano, bispo de Cartago (248-258), foi o primeiro a ser chamado de Papa. Em Roma, o termo só passou a ser aplicado a seu bispo a partir do século VI, com o Papa João I. Já o Colégio de Bispos — o episcopado ou a conferência episcopal — tem raiz cristã. Bispo significa “supervisor” e é citado diversas vezes no Novo Testamento (1 Tm 3, 2; Tito 1, 7; 1 Pd 2, 25; At 20, 29). Assim como o substantivo “episcopado” (1 Tm 3,1).

Todo poder centralizado gera rivalidades. A partir do século III, teve início uma acirrada disputa entre as quatro principais metrópoles do Império Romano — Constantinopla (atual Istambul), Roma, Antioquia e Alexandria. Os bispos dessas cidades eram conhecidos como “patriarcas”.

Cipriano não admitiu que o bispo de Roma exercesse autoridade sobre ele, bispo de Cartago. Insistiu que, entre bispos, deveria vigorar “completa igualdade de funções e poder”.

Porém, Roma conseguiu se impor, sobretudo a partir de sua aliança com o imperador germânico Carlos Magno, em 800. Isso tensionou suas relações com os patriarcas do Oriente e tornou inevitável o primeiro grande cisma da Igreja, ocorrido em 1052, que marca o início do que hoje se conhece por Igreja Católica (romana), de um lado, e Igreja Ortodoxa, de outro.

O papado, herdeiro do legado imperial de Constantino, tornou-se uma monarquia absoluta (ainda hoje), com poderes sobre reis e imperadores (não mais). Essa estrutura piramidal de poder passou a não diferir de todas as outras análogas na esfera civil, marcadas por intrigas, traições, subornos, negociatas, nepotismo, utilizando uma linguagem inacessível aos fiéis (o latim) e trocando a arte de convencer (e converter) pela força da coerção (aterrorizar): culpa, inquisição, inferno, medo, venda de indulgências etc.

Dizem que Stalin teria perguntado de quantas divisões de exército dispunha o Papa. De fato, Roma, por sua habilidade diplomática, saiu vitoriosa em inúmeros embates com os principais poderes do Ocidente.

Toynbee chegou a afirmar que a Igreja ficou afetada pela “embriaguez da vitória”.

Trancado no Vaticano, o Papa passou a viver numa esfera irreal, refém de uma cúria mais interessada no apego ao poder que na missão evangélica de levar aos povos a palavra de Jesus.

A modernidade balançou os alicerces da Igreja. A liberdade de consciência, o avanço das ciências, as novas tecnologias, o pluralismo ideológico, tudo isso desmistificou o papado. Pio IX, num gesto de desespero, chegou a promulgar o controvertido dogma da infalibilidade papal, como se a História não registrasse tanta falibilidade em Papas que aprovaram torturas, sentenças de morte, assassinatos, simonia, adultério etc.

Leão XIII mudou a estratégia da Igreja e aliou-a aos mais fortes, ao lado dos quais Bento XV comemorou o fim da Primeira Guerra Mundial. Pio XI apoiou Mussolini, Hitler e Franco. Pio XII se omitiu frente aos crimes de lesa-Humanidade do nazifascismo.

O ciclo mereceu uma pausa com João XXIII e, de certo modo, com Paulo VI, que condenou a Guerra do Vietnã e a ditadura militar brasileira. Mas prosseguiu com o apoio de João Paulo II à ditadura Pinochet no Chile e à política agressiva de Reagan contra a Nicarágua sandinista. Bento XVI se omitiu frente aos recentes golpes de Estado em Honduras e Paraguai.

Ao contrário da instituição do papado, a do episcopado merece aplausos, sobretudo na América Latina entre 1960-1990, com bispos mártires (Angelelli e Romero) e confessores (Hélder Câmara, Casaldáliga, Proaño, Evaristo Arns, Padim, Mendez Arceo, Samuel Ruiz).

O Concílio Vaticano II pretendeu valorizar os poderes dos bispos e reduzir o do Papa. Hoornaert pergunta: “Pode a França subsistir sem rei; a Inglaterra, sem rainha; a Rússia, sem czar; o Irã, sem aiatolá? A própria História se encarrega de dar a resposta”, diz ele.

Cedo ou tarde, a Igreja terá de democratizar sua estrutura de poder. Torná-la mais colegiada. O que se discute não é a figura do Papa, é a estrutura do papado. Em suas cartas escritas durante o Vaticano II, e hoje publicadas, dom Hélder diz ter sonhado que o Papa enlouqueceu, jogou sua tiara no Rio Tibre e ateou fogo no Vaticano.

Na opinião do ex-arcebispo de Olinda e Recife, o Papa deveria doar o Vaticano à Unesco, como Patrimônio Cultural da Humanidade, e passar a residir em lugar mais condizente com a sua condição de sucessor de um pescador da Galileia e representante na Terra daquele que não tinha uma pedra onde recostar a cabeça.

Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros.

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